Gustavo Renato Fiscarelli e Fernanda Maria Alves Gomes
O grande jurista Miguel Reale¹ defendia que um dos méritos do Código Civil vigente era não se apegar ao rigor normativo, sem pretensão de prever tudo detalhada e obrigatoriamente; que o importante em uma codificação é o seu espírito: o conjunto de ideias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam. O código atual é um sistema harmônico de preceitos que exigem o recurso à analogia e aos princípios gerais, assumindo um sentido mais aberto e compreensivo, para que a evolução da atividade social naturalmente venha a alterar-lhe o conteúdo.
Esse entendimento é perceptível nos dispositivos da Parte Geral relativos ao registro civil, em que a estruturação hermenêutica seguiu a lógica com que foram desenvolvidos os temas, sem que
houvesse a intenção de exaurir todas as hipóteses registrais.
A metodologia adotada à época não merece reparos, na medida em que pela leitura do art. 9o verifica-se que foram indicados atos submetidos a registro, que geram efeitos declaratórios ou constitutivos, como nascimentos, casamentos, óbitos, emancipações, entre outros. Na sequência, são exemplificadas hipóteses de averbação, definida como o ato que modifica o conteúdo do registro, como por exemplo a alteração de nome, do sobrenome ou do sexo; a exclusão de maternidade ou da paternidade; o reconhecimento de paternidade ou da maternidade biológica ou socioafetiva no assento
de nascimento.
Desse modo, verifica-se que há impropriedade na proposta de reformulação dos arts. 9o e 10 do Código Civil, pois enumera situações como passíveis de registro ou averbação, sem observar a terminologia correta na medida em que se tratam de atos jurídicos distintos, com finalidades diferentes.
Ainda que esse ponto deva ser revisto, é inegável a sintonia da comissão responsável pelo anteprojeto com o que foi idealizado por Reale ao dispor que no assento de nascimento será reservado espaço para averbações decorrentes de vontade expressa do interessado que permitam a identificação de fato peculiar de sua vida civil, sem que isto lhe altere o estado pessoal, familiar ou político. Essa previsão institui o princípio da concentração na matrícula da pessoa natural², privilegiando a veracidade, publicidade, eficácia e segurança jurídica.
Com efeito, prevalece a vontade do interessado em publicizar essas informações, que uma vez constando do assento, permite que ele próprio ou terceiros não tenham o ônus de realizar buscas em
inúmeros órgãos para obtê-los.
Isto posto, além das hipóteses já previstas em lei e das novas possibilidades indicadas pela comissão, como o termo declaratório de família parental e a decisão apoiada, quais peculiaridades de sua existência o registrado teria interesse em averbar no registro civil?
Pode-se exemplificar a dupla nacionalidade; a condição de doador de órgãos; autodeclaração étnico racial; tipo sanguíneo e fator RH; condições específicas de saúde como síndromes, limitações física,
sensorial ou psíquica, alergias ou doenças hereditárias; apelido notório; indicação do domicílio tributário quando for permitido; autodeclaração como segurado especial para fins previdenciários; número do cartão nacional de saúde do recém-nascido; existência de testamento público ou particular, de diretivas antecipadas de vontade, de testamento digital ou indicação do gestor da herança digital; destinação de material criopreservado³ em caso de óbito; exercício profissional, títulos acadêmicos e prêmios recebidos;
religião; filiação partidária; realização da prova de vida para fins previdenciários.
Evidente que a lista não é exaustiva, pois o surgimento de novos direitos acarretarão novas possibilidades de averbação. A expectativa é que a centralização de dados reduzirá custos e trará praticidade quando houver necessidade de se obter alguma das informações voluntariamente incluídas no assento.
Atualmente, muitas situações não ingressam no registro civil e o seu desconhecimento pode afetar interesse próprio ou de terceiros, bem como contrariar ideologia ou crenças pessoais do registrado em
momento que não possa mais se manifestar, como por exemplo oposição ao uso futuro de material criopreservado em clínica de fertilização após o óbito; desconforto de que pessoas próximas tenham acesso ao conteúdo de seu e-mail ou mensagens, bem como manipulem sua imagem por inteligência artificial.
Por outro lado, a concentração dos dados pode facilitar a prova da qualificação profissional ou dos títulos acadêmicos, noticiar a existência de disposições de última vontade ou que é portador de alguma necessidade especial, doença infecto contagiosa ou autoimune que interfira em tratamento de saúde ou doação de órgãos.
Note-se que em algumas hipóteses bastará mera manifestação de vontade formalizada junto ao RCPN, para que ocorra a averbação, como a opção pela condição de doador de órgãos ou do domicílio tributário.
Em outros casos, a informação deverá ser comprovada como dupla nacionalidade; autodeclaração como segurado especial pescador, rural ou seringueiro; existência de testamento ou condições
específicas de saúde.
E por fim, algumas averbações exigirão maior detalhamento, cabendo a elaboração de termo declaratório, como na hipótese das diretivas antecipadas de vontade, requerimento detalhando a opção
pela decisão apoiada ou a indicação de gestor da herança digital e orientações quanto ao direito de imagem.
Em futuro próximo, qualquer cidadão poderá acessar o Sistema de Autenticação Eletrônica do Registro Civil – IdRC, utilizando a base biográfica e biométrica do RCPN para validação da identidade eletrônica, sempre que quiser fazer a indexação de qualquer informação que tenha interesse no assento civil. Essa identificação eletrônica do registrado estará em constante atualização, de modo a manter a segurança e atributo das pessoas que voluntariamente optarem pela indexação à sua matrícula pessoal.
Assim, seja pelo IdRC ou pelo requerimento protocolado no ofício da cidadania, a informação já poderá ser averbada no assento de nascimento para dar-lhe publicidade e surtir efeitos jurídicos de forma imediata. Portanto, a lógica da concentração dos dados da pessoa natural na matrícula registral é simplificar, proporcionando maior eficiência, praticidade e segurança jurídica para todos.
1 Disponível aqui.
2 Proposta do novo código civil Art. 10 §1º.
3 Proposta do novo código civil Art. 1.798 § 2º
Fonte: Migalhas